
Professor Wagner Balera – Foto: Arquivo Pessoal l264g
Na biografia de William Henry Beveridge, escrita por Jose Harris, o pai da seguridade é definido como o profeta da revolução social pacífica.
Seria bem esse o escopo da seguridade social: impor a revolução pacífica. Isto é, a transformação da sociedade desde dentro, mediante verdadeiro projeto de inclusão, no qual ninguém fica para trás.
Para refletir sobre o tema, devemos olhar para o que denega essa proposta: o que é hoje em dia a exclusão e cotejar o dado atual com o relato de Beveridge.
A exclusão foi retratada no documento: “Social security and allied services” de 1942, mais comumente conhecido como Relatório Beveridge.
Nesse Relatório, a exclusão é representada por cinco gigantes, a saber: a miséria, a doença, a ignorância, a imundície e a desocupação.
O que é a miséria do mundo?
Miséria é a ausência das mínimas condições de vida. As mínimas condições de vida que foram sintetizadas pelo artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos: toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar. Eis o que deve ser considerado o padrão de vida mínimo: vestuário, alimentação, habitação, cuidados médicos, serviços sociais indispensáveis e o direito & agrave; seguridade em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice e outros mais. Eis as mínimas condições de vida. Quem não as tem é o miserável, é o indigente. São os milhões e milhões de pobres do mundo, os quais a seguridade social ainda tristemente não atinge e de quem nós, mestres da lei e levitas, fazemos questão de nos afastar, atravessando a calçada para o outro lado da rua.
O primeiro gigante segue assombrando a humanidade do século XXI.
O segundo gigante é a doença. Agora, por exemplo, o mundo vive a provação enorme da pandemia. Poder-se-ia dizer que a Covid-19 revelou a vulnerabilidade de toda a gente. O mundo se viu em total despreparo para enfrentar essa circunstância cuja repercussão atravessará, decerto, todo o século e cujas sequelas se farão sentir por toda a parte.
O terceiro gigante apontado pelo Relatório é a ignorância. Esse mal atinge a imensa maioria das pessoas que são vítimas da mentira, das promessas falazes e da enganação.
Eis, então, que outro gigante nos arrepia. É espantoso que tenhamos sido capazes de chegar ao terceiro milênio e ainda enfrentemos a imundície; a sujidade; a falta de saneamento básico. A Organização Mundial da Saúde e o Fundo das Nações Unidas para a Infância registram que cerca de quatro e meio bilhões de pessoas (!) carecem de saneamento básico seguro e, portanto, vivem na imundície. Que século! Viver na sujidade retira a dignidade das pessoas.
Surge, enfim, o derradeiro gigante: a desocupação, isto é, o desemprego em massa. A Organização Internacional do Trabalho (OIT), antes mesmo da instauração da pandemia, apurou que o mundo já registrava 220 milhões de desempregados. A OIT utiliza de conceito bastante quando se refere àqueles que já tiveram emprego, no sentido formal. Há outros milhões de milhões que não constam na estatística, porque jamais tiveram o a um posto de trabalho, atuando no mercado informal. O grande especialista brasileiro, José Pastore, afirma que cerca de quarenta por cento da população economicamente ativa está alocada nesse setor. É a ausência dos direitos sociais básicos.
Portanto, marcam presença, os cinco grandes gigantes: a miséria, a doença, a ignorância, a imundície e a desocupação.
Esta sintética exposição do que seriam os objetivos da seguridade social não objetiva retratar o século em que vivemos. Pois, a Declaração Universal dos Direitos Humanos é documento perene, o único consenso universal a que a humanidade chegou. A Declaração é um não aos males gigantes!
Por vezes nos agrada a longevidade. Comparada a sobrevida média no Brasil dos anos 1960, 62 anos, com a atual, que é de 74 anos, vemos que houve evolução. São mais doze anos de sobrevida média.
No entanto, a longevidade cria impacto expressivo nos custos da seguridade social, cuja mensuração está por se fazer. O fato é que são doze anos a mais de vida, de gastos com previdência, com saúde, com assistência. E, os anos finais, são mais dispendiosos.
Claro que a longevidade é positiva e é devida ao aperfeiçoamento científico. Mas o ônus expressivo que provocará não está sendo devidamente avaliado. O que é previdência? Prever o que ocorrerá.
Advirta-se: a seguridade social não é a única política de inclusão. Se assim fosse, estaria sendo jogado nas costas largas da seguridade social uma carga que incumbe aos próprios Estados e à comunidade internacional enfrentar. A seguridade social é parte da solução dos problemas, mas não é a única solução.
Veja-se, a título exemplificativo, o auxílio emergencial pago a quem ficou sem nada no auge da pandemia: os desamparados que acorreram ao auxílio, foram mais de 60 milhões.
Mas faz falta o programa assistencial perene, ajustado, regulado; pior: nem mesmo um banco de dados idôneo existe para que se saiba quem, onde e em que situação se encontra ao desamparo. Só assim se poderia falar em política de verdadeira inclusão social. Inclusão social consiste em conferir dignidade à pessoa humana, não em simples favor do governante. Quem confere dignidade social é a Declaração Universal dos Direitos Humanos. O pobre tem direito subjetivo ao amparo, não a mero favor.
O sinal de esperança são os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, o salutar programa das Nações Unidas, também conhecido como Agenda 2030. Eis a síntese da pauta da inclusão social em nossos dias.
Quando o tema é desenvolvimento, a referência obrigatória é a bastante conhecida definição de São Paulo VI que, na memorável encíclica “Populorum Progressio”, isto é, desenvolvimento dos povos, de 1967, formula a pergunta “de que desenvolvimento estamos tratando?”
Os economistas cuidam de crescimento econômico. Para eles, o efeito do crescimento econômico é o desenvolvimento. Paulo VI adverte: o verdadeiro desenvolvimento é o do homem todo e de todos os homens. Eis aí o baluarte do século XXI, os objetivos do desenvolvimento sustentável.
Oxalá cheguemos a cumprir a Agenda 2030 como política universal de inclusão social.
*Wagner Balera é professor titular de Direito Previdenciário e de Direitos Humanos na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), livre-docente em Direitos Humanos, doutor em Direito das Relações Sociais, autor de mais de 30 livros na área de Direito Previdenciário e de mais de 20 livros da área de Direitos Humanos e sócio fundador e titular do escritório Balera, Berbel & Mitne Advogados.